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A minoria arbitrária sem rosto, sem responsabilidades e sem democracia (O Estado de S. Paulo)

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O recente editorial do Estadão intitulado “Confusão de Causas” trouxe à luz um aspecto raro nas diversas análises disponíveis até agora sobre o movimento dos caminhoneiros iniciado em 21 de maio: a perspectiva da responsabilidade. Apenas para listar alguns dos resultados diretos do movimento, podemos citar a restrição duradoura da liberdade de locomoção, o impedimento do acesso tempestivo a cirurgias e medicamentos, prejuízos de alta monta em diversos setores econômicos (p. ex.: agropecuário), significativas perdas geradas pela quebra de confiança e reforço da alta imprevisibilidade do mercado nacional, além do risco de comprometimento da viabilidade econômica mínima para a subsistência de pessoas e para a manutenção de empresas.

Independente de considerá-lo fundado em causas justas ou não, o movimento dos caminhoneiros continua a gerar graves consequências, de modo a impulsionar o questionamento sobre quem são os responsáveis e de que maneira a própria democracia estaria envolvida nesse processo.

Em instigante seminário sobre teoria democrática ministrado na Universidade de Nova Iorque, os Professores John Ferejohn e Jeremy Waldron alertavam para um dos riscos imanentes à democracia centrado no “arbítrio da maioria”, em que direitos fundamentais de minorias por vezes são ameaçados ou suprimidos por ações políticas perversamente embasadas na vontade majoritária. Um exemplo claro desse tipo de ocorrência foi tratado no julgamento do caso Loizidou v. Turquia (1998), em que a Corte Europeia de Direitos Humanos condenou o Estado turco por haver promovido desapropriações de imóveis pertencentes a minorias cipriotas de origem grega, implementadas com base em critérios de notória discriminação racial.

No âmbito do direito, há mecanismos essenciais que visam à proteção das minorias contra o risco da “tirania da maioria”. Para tanto, os direitos fundamentais constitucionais e os direitos humanos internacionais se prestam em grande medida, a citar as liberdades de expressão e de manifestação do pensamento e o direito à participação política. Entretanto, é preciso ressaltar que o exercício abusivo de tais faculdades não encontra guarida na Constituição, nem tampouco nos tratados internacionais de direitos humanos.

Durante os últimos dez dias, os brasileiros sofreram as severas consequências de um fenômeno inverso, bastante próximo a um “arbítrio de minoria”, que produziu a interrupção da rotina econômica nacional mediante o uso da força por um pequeno, mas surpreendentemente poderoso, grupo vinculado ao ramo de transporte terrestre de cargas. Após poucos dias de um movimento nacional que não pode ser qualificado de “greve” em seu sentido clássico, o quadro geral foi de perdas econômicas graves, restrição de liberdades e riscos à vida e à integridade humanas.

Independente do nível social, político ou econômico, todos estamos sujeitos a assumir as responsabilidades por nossas ações e omissões nas diversas esferas do direito (penal, civil, administrativa, internacional). Apesar da ocorrência de danos de alta relevância causados pelos aderentes ao movimento dos caminhoneiros, nenhuma entidade ou liderança se apresentou responsável até o momento, a evidenciar um cenário aparentemente difuso, sem controle e destituído de transparência nas respectivas tomadas de decisão.

Em casos como o presente, revela-se a ineficácia parcial do próprio sistema de responsabilidades, sem o qual o direito falece enfermo. Um sintoma dessa anomalia pode ser identificado na baixa eficácia dissuasória da decisão do Ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal adotada ainda em 25 de maio (ADPF-519), que havia autorizado a desobstrução das rodovias brasileiras pelas forças policiais federais e estaduais, juntamente com a fixação de significativas multas para quem impedisse a livre circulação de pessoas e cargas.

É certo que algumas circunstâncias podem excluir a responsabilidade jurídica, a exemplo das hipóteses de força maior marcada pela imprevisibilidade, ou estado de necessidade caracterizado pela completa falta de alternativa disponível, mas tais escusas não se configuram aplicáveis à atuação de uma minoria que, de forma consciente e premeditada, comprometeu o exercício de direitos e liberdades individuais e coletivos de forma duradoura.

Sob o prisma político, a falha no ciclo da responsabilidade evidencia efeitos ainda mais graves a médio e longo prazos. Isso ocorre por que há uma correspondência necessária entre o mecanismo das eleições e a responsabilidade política (Accountability), sem a qual as colunas de sustentação da democracia se enfraquecem. Diferente de sua equivalente jurídica, a responsabilidade política dedica-se prioritariamente à relação entre representantes (agentes políticos) e representados (eleitores), sob a mediação de eleições periódicas que visam recompensar ou dispensar os mandatários e seus partidos políticos de acordo com o respectivo desempenho.

Ao buscar-se substituir o regrado embate político-eleitoral pelas práticas aparentes de locaute, bloqueio duradouro de vias públicas e exercício arbitrário das próprias razões, em um quadro de sequestro da maioria pela minoria, a consequência recai na deterioração essencial da Política, por intermédio do esvaziamento da arena pública aberta e isonômica onde se realiza a ação humana da mais alta importância, conforme nos inspira Hannah Arendt.

Nesse sentido, não surpreende que parte dos aderentes ao movimento sob trato passou a clamar pela derrubada do governo e o retorno da ditadura, a apenas cinco meses das eleições diretas para presidente, governadores, senadores e deputados federais, estaduais e distritais, de modo a ressaltar a performance de uma minoria arbitrária em busca de projetos mais amplos de supressão do método democrático.

Ao final, importa alertar que em um ambiente social destituído de responsabilidades operantes, nem o direito nem a democracia serão capazes de resistir por muito tempo (Fonte: Estadão).

[Artigo de autoria de Ranieri L. Resende]

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