Uma das passagens mais inquietantes da Ilíada de Homero está no episódio em que se digladiam o troiano Páris e o aqueu Menelau, respectivamente amante e esposo da belíssima Helena. No exato momento em que o vencedor Menelau está prestes a ceifar a vida do vencido em justa luta, surge a deusa Afrodite e “sequestra” Páris da cena, entregando-o salvo aos braços de Helena. Parece ter sido esse um dos primeiros usos do que posteriormente se denominou deus ex machina, cuja tradução literal seria algo próximo a “deus surgido da máquina”.
Deus ex machina é uma técnica utilizada na literatura e no teatro, mediante a qual somente a intervenção de um deus tem a capacidade de interromper o fluxo da narrativa e evitar o ápice da crise. No referido trecho da Ilíada, Afrodite impediu a morte certa do príncipe troiano. Cumpre notar que essa intervenção divina, tão comum nas tragédias gregas, é quase sempre carregada de um caráter arbitrário na sua influência impactante nos assuntos humanos.
Aparenta que esse risco de interferência foi assumido abertamente na recente ordem judicial do Ministro Luiz Fux às Mesas Diretoras do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, para que o chamado “Projeto de Lei das 10 Medidas de Combate à Corrupção” (PL n.º 4.860/2016) retorne ao seu estado original, tornando “sem efeito quaisquer atos, pretéritos ou supervenientes, praticados pelo Poder Legislativo em contrariedade à presente decisão” (STF-MS- 34.530/DF).
Chama atenção que, ao nulificar praticamente todo o processo legislativo, o Relator adotou fundamentos embasados não apenas em vícios de procedimento, mas na inadequação substantiva do próprio projeto de lei, quando comparado com a proposta popular originária. Ao final, até mesmo o Julgador reconheceu a notória inovação de sua tese monocrática.
Algumas regras elementares podem ser elencadas para sustentar a relação harmônica entre os poderes, dentre as quais se destaca que o Judiciário busque respeitar o processo de produção normativa dos outros poderes antes de intervir.
Em primeira leitura, evidencia-se uma preocupante situação de “sequestro” da política parlamentar pelo Supremo Tribunal Federal, diante da sua clara interferência no conteúdo da “narrativa” legislativa. Ainda que se admita que a finalidade da decisão seja a mais nobre, dirigida a evitar o auge de uma crise de legitimidade ética, isso não a imuniza perante os standards sustentadores da separação dos poderes.
Conforme se extrai do citado trecho da Ilíada (deus ex machina), o risco de arbitrariedade é uma imanência incontornável da intervenção direta da divindade em assuntos demasiadamente humanos. Será imprescindível que os deuses exercitem o autocontrole (Fonte: Blog do Moreno)
[Artigo de autoria de Ranieri L. Resende & José Ribas Vieira]